Um tounneau de Boeing 727


        Era madrugada. Voar a noite já é antinatural. Como dizia o Nei Furo, meu colega da FAB, se Deus quisesse que voássemos à noite nos teria dado faróis no lugar das sobrancelhas.

         O voo era de cheque e o avião um Boeing 727. Todos na cabine estavam cansados. O checando na direita, o engenheiro de voo na ´´penteadeira`` e o comandante no Jump Seat. O Copiloto já tinha passado no cheque, pois, como é comum naquela companhia, são bem preparados e voam bem e ainda tínhamos uns dez minutinhos de sobra para completar o voo. Aí ocorre aquilo que eu sempre escutei: ´´Quando não se tem o que fazer, faz-se besteira.``

         Eu gosto de acrobacia. Aliás, acho que aqueles que nunca viram a terra de cabeça para baixo só curtiram 20% do prazer que o voo pode nos proporcionar. quantas vezes, bebendo cerveja num churrasco lá no Aeroclube do Rio Grande do Sul, em companhia dos amigos de lá, ouvi o Casarin contar como é que ele fez um tounneau com um Boeing 737. O ´´véinho`` é bom mesmo. Não gosta de contar a história e nem de ensinar, talvez até para não incentivar outras tentativas. Mas ele fez mesmo, saiu perfeito e ele acabou pagando caro por isso.

         Como eu dizia, tínhamos ainda dez minutos, o voo era local e estávamos sobre o Rio de Janeiro. Na cabine estavam todos sonolentos e já íamos pousar. Lembrei-me do ´´véinho`` e esqueci do bom senso. Piquei o ´´dois setão`` em direção à pista 15 do Galeão, como quem vem de Caxias. Com uns 3000` no altímetro, a velocidade já em torno de 370 kt e eu puxei o nariz até uns 30 graus cabrado. Com 350 kt, conforme instrução ´´dele``, comandei o bendito tounneau de aileron. É incrível ver como gira bonito. Realmente a Boeing fez ótimos aviões, principalmente o 27, que é bom de comando. Não puxou ´´G`` e a velocidade não disparou. Foi perfeito.

         Daí, emendei outro pro lado contrário, até que me saciei. Quando nivelei, o companheiro na direita me pediu para fazer ´´unzinho só``. como eu acho que a aviação não pode ter mistério, passei-lhe os comandos. Nesta altura não tínhamos mais ninguém com sono a bordo. todos vibravam com a máquina e com as manobras. Ele ganhou velocidade, chamou o nariz e virou. Cometeu o erro mais comum àqueles que ainda não se adestraram na execução dos tounneau de aileron. Não parou de puxar o nariz antes de iniciar o giro de asas e, como consequência, ao passar pelo dorso, o nariz baixou demais. Além disso, desfez o comando de aileron, o que resultou num split ´´S`` a baixa altura.

         Nesta situação no dorso, baixa velocidade, nariz para baixo e perto do chão, senti aquele gosto amargo na boca, quando ele falou: ´´Me fu...``. Assumi os comandos, mas sem qualquer esperança de conseguir fazer alguma coisa que nos tirasse daquela situação. O chão crescia rápido e víamos nitidamente as luzes das pistas do Galeão ficando para trás. Estávamos próximo da ponte Rio-Niterói, o que tornava a cena mais macabra ainda, devido ao negrume do mar da baía da Guanabara, só enfeitado aqui e ali pelas luzes de algum navio.

         Desvirar não dava mais. O Avião é bom, mas não é acrobático. se o fosse, eu comandava um meio tounneau e em segundos estaria voltando ao voo normal. O jeito era puxar o nariz no limite. Ainda tentei ´´capar`` os motores e abrir o speed brake, mas já era tarde. Em segundos você pensa tantas coisas! A lei da Gravidade é inexorável. ela nos puxa para baixo sem piedade. Para ela não importa se você é velho e já viveu a vida, ou ainda é jovem e inexperiente, querendo vivê-la; se o que fez é certo ou errado, se é permitido ou não, se você está só ou levando outros consigo, se você começou a manobra na altura certa ou se, por exibicionismo, fez tipo ´´chão a chão``.

         Por tudo isso, pelo menos para ter a consciência tranquila, caso um dia você se veja numa situação parecida, só faça acrobacias em aviões acrobáticos, em locais permitido, de preferência sozinho e a uma altura segura.

         E eu puxei o nariz com toda a força no manche até colidir com o solo, quase na vertical. O barulho é estranho e o tranco também. Por quase um minuto ninguém falou nada. Um olhava para o outro. Levantei da cadeira. Abri a porta e convidei a todos para tomar uma cafezinho, Depois voltaríamos para desligar o simulador, pois o nosso voo era o último da noite.

         Gustavo Henrique Albrecht é ex-Piloto da FAB, Piloto de garimpo, Piloto de teste de ultraleves, Presidente da ABUL- Associação Brasileira de ultraleves, da qual foi fundador. Voa cerca de 80 aeronaves diferentes, entre aviões de acrobacia, planadores, Helicópteros, asas delta, parapentes e outros objetos voadores.

Artigo publicado originalmente em
Revista SKYDIVE Ano 1 N°5 1994

2 comentários:

  1. Só me dei conta quando li "desvirar não dava mais" qqqq.....Ufaaaa.....

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. O Gustavo Albrecht fazia você se interessar pela história. rsrs

      Excluir

ROCKAIRCRAFT